Machado de Assis e John Berger: animais, humanidade e crítica ao antropocentrismo

Enquanto leitora, gosto de buscar conexões entre as obras que me acompanham. É um exercício que amplia a experiência e nos faz olhar para os livros de outra forma. Neste post, proponho um diálogo entre a coletânea de contos Na Arca, de Machado de Assis, e  Por que olhar os animais?, de John Berger. As duas obras, publicadas pela Fósforo Editora, cada uma de sua maneira, tratam de um mesmo tema: a complexa relação entre humanos e animais.

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Embora escritas em contextos muito diferentes, ambas provocam reflexões sobre o antropocentrismo, a condição animal e as formas como nossa visão de mundo molda o olhar sobre os outros seres.

Machado de Assis e Na Arca: animais com voz própria

Em Na Arca: Machado de Assis e os animais, a Fósforo reúne textos em que o escritor brasileiro dá protagonismo a cães, gatos, pássaros e até burros. A organização é de Fabiane Secches e Maria Esther Maciel, e a edição conta com as ilustrações de Gê Viana.

O que impressiona é que os bichos aparecem não como simples metáforas, mas como sujeitos de reflexão. O canário que filosofa sobre a natureza, os burros que discutem a própria exploração e o cachorro do conto Miss Dollar, que movimenta a narrativa, revelam um Machado atento à crueldade científica e à arrogância humana do século 19.

Esse olhar faz da coletânea uma leitura atualíssima. Hoje falamos em estudos críticos animais, mas Machado já antecipava debates éticos sobre a vida não humana. Ele questionava o lugar de superioridade do homem e criava histórias em que os animais nos obrigam a rever nossa própria humanidade.

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John Berger e Por que olhar os animais?: a perda do vínculo

Já John Berger, em Por que olhar os animais?, analisa como a modernidade transformou radicalmente nossa relação com o mundo animal. O “olhar partilhado” que por séculos aproximava humanos e bichos se esvaziou. Restaram apenas os animais de estimação domesticados ou os zoológicos, que mais exibem do que preservam.

Nos textos reunidos (escritos entre 1971 e 2009), Berger fala sobre a proximidade com os primatas, a desigualdade até nos modos de se alimentar e a lenta extinção das práticas de convívio com os animais do campo. Sua crítica é clara: o animal deixou de ser companheiro existencial e se tornou recurso ou objeto de estudo, o que acentuou a alienação humana em relação à natureza.

Assim como Machado, Berger nos lembra que reconhecer a perspectiva animal é essencial para repensar nossa própria condição.

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Pontos de encontro: alienação e crítica social

A leitura conjunta dessas obras evidencia um paradoxo. Dizemos que “preservamos” espécies, mas somos também os responsáveis pela sua destruição. Esse olhar de superioridade reforça nossa separação do mundo natural e dificulta a construção de uma relação mais empática.

Aqui entra a ideia de alienação: ao tratarmos a natureza como algo externo, nos afastamos também de nossa própria animalidade. Tanto em Machado quanto em Berger, fica evidente que a objetificação dos animais anda de mãos dadas com outras formas de exploração e desigualdade.

Machado usa a literatura, com ironia e sensibilidade, para mostrar como os bichos espelham a condição humana. Berger, por outro lado, explicita a violência da modernidade, que rompeu um elo essencial entre espécies e sustentou um projeto de progresso baseado na dominação.

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Por que ler essas obras hoje?

Refletir sobre os animais em Machado e Berger é também refletir sobre nós. Em tempos de crise ambiental e de debates sobre como nos relacionamos com o planeta, essas leituras se tornam ainda mais urgentes. Ambos tensionam a visão ocidental que colocou o homem como medida universal. Essa lógica de dominação não se limitou aos animais: ela também inferiorizou povos, culturas e modos de vida, definindo o que seria considerado “civilizado” ou “racional”. O mesmo olhar que separou o humano do não humano foi o que estabeleceu fronteiras entre o “centro” e a “periferia”, entre os que produzem conhecimento e os que seriam apenas objetos de estudo.

Nesse sentido, Machado de Assis e John Berger tocam em algo que hoje o pensamento decolonial ajuda a nomear: a crítica à hierarquia que sustenta as formas de exploração. Quando Berger denuncia a transformação do animal em mercadoria e Machado dá voz a criaturas vistas como inferiores, ambos questionam uma mesma matriz de poder que naturaliza desigualdades — entre espécies, entre classes, entre povos.

Olhar para esses textos a partir de um viés decolonial não significa forçar uma leitura contemporânea sobre obras de outro tempo, mas reconhecer como certos gestos literários e ensaísticos já abriam brechas nesse sistema de pensamento. Há, em ambos, uma tentativa de restituir o olhar: de ver o outro, humano ou não humano, não como objeto, mas como sujeito de experiência. Essa inversão de perspectiva é poderosa porque nos obriga a repensar o próprio lugar de quem observa. Afinal, ao falar dos animais, Berger e Machado também falam sobre o que perdemos enquanto humanidade quando nos colocamos acima de tudo o que vive.

Ler Na Arca e Por que olhar os animais? é, portanto, abrir espaço para pensar em outras formas de coexistência. São livros que ampliam nossa sensibilidade, nos lembram de que não estamos sozinhos no mundo e questionam a naturalização da superioridade humana.

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