Saidiya Hartman: reescrevendo histórias silenciadas com fabulação crítica

Nem tudo que foi vivido virou documento. E, muitas vezes, o que chegou até nós veio distorcido, incompleto, contado pelos olhos de quem detinha o poder. Como resgatar, então, as histórias de quem foi sistematicamente silenciado? Como recontar vidas que só aparecem no arquivo como mercadoria, estatística ou dano? É nesse terreno, entre o apagamento e a memória, que se move a obra potente de Saidiya Hartman.

Professora na Universidade Columbia e referência  nos estudos sobre a escravidão e a experiência negra na diáspora, Hartman escreve para desafiar o modo como a história é construída. Mas sua escrita vai além da crítica acadêmica: ela reinventa formas de narrar, tensiona os limites do que chamamos de verdade e transforma a especulação em gesto político. Seus livros propõem uma escuta atenta aos rastros, às frestas, aos fragmentos e, ao fazer isso, nos convidam a imaginar outros modos de existência possíveis, mesmo quando tudo parecia condenado ao silêncio.

capas Saidiya Hartman

Para lidar com os silêncios do arquivo colonial, Hartman propõe a ideia de fabulação crítica. Em vez de tentar preencher lacunas com verdades absolutas, ela aposta na especulação ética, no gesto de imaginar vidas a partir dos poucos vestígios disponíveis.

Não se trata de inventar fatos, mas de recusar o apagamento. A fabulação crítica opera entre o que se sabe e o que não se pode mais saber com certeza. É aí que entra a literatura como aliada da história: como uma ferramenta para desafiar os limites do que é considerado “evidência” e abrir espaço para uma narrativa mais justa.

Essa abordagem também desafia a própria lógica do arquivo colonial, que muitas vezes apresenta como “fonte” aquilo que é, na verdade, resultado de controle, coerção e violência. Como confiar, por exemplo, em documentos que registram apenas a venda de pessoas, mas não seus nomes, desejos ou medos?

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Hartman também cunhou a expressão afterlife of slavery , que é comumente traduzida como “a sobrevida da escravidão” , para dar nome às formas como a lógica da escravização continua operando em nossos dias. Mesmo após a abolição formal, os mecanismos de exclusão, criminalização e controle persistem, reconfigurados pelo racismo estrutural.

Essa sobrevida se manifesta no encarceramento em massa da população negra, na violência policial, na desigualdade de acesso a direitos básicos, mas também na maneira como a história é contada — ou omitida — nas instituições de ensino, nos museus, na cultura dominante. A obra de Hartman aponta para esse campo de forças onde o passado ainda pulsa, como ferida aberta e como possibilidade de transformação.

livros Saidiya Hartman

A Fósforo Editora publicou no Brasil dois livros fundamentais de Saidiya Hartman, ambos traduzidos com o cuidado que as obras exigem e contendo ótimos materiais de apoio. 

Vidas rebeldes, belos experimentos (2022)

Neste livro, Hartman nos leva a um passeio pelas vidas de meninas e mulheres negras nos Estados Unidos entre o fim do século XIX e o início do XX — muitas delas pobres, queer, “desordeiras”, institucionalizadas ou criminalizadas por desafiar normas de gênero e de moral. Ela as chama de "coristas", "vagabundas", "visionárias"; mas também de "inventoras de formas de liberdade".

A obra parte de registros arquivísticos — relatórios, prontuários, imagens — para reconstruir essas existências, costurando fragmentos com sensibilidade e imaginação. Ao contrário da história tradicional, que silencia o que não pode comprovar, Hartman insiste em dar corpo ao que se tem. É um livro que desafia a fronteira entre história e literatura, entre teoria e poesia, e nos convida a pensar: o que seria a liberdade para quem nunca a teve garantida? 

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Cenas da sujeição (2025)

Publicado originalmente em 1997, este é o livro que lançou Hartman como uma das vozes mais potentes nos estudos da diáspora africana. Nele, a autora analisa o que acontece depois da abolição formal da escravidão nos EUA, mostrando como as práticas de dominação se atualizam no cotidiano da liberdade prometida.

Ao desfamiliarizar o familiar, espero iluminar o terror do mundano e do cotidiano, em vez de explorar o espetáculo chocante." (p. 46)

A obra se debruça sobre espetáculos de menestréis, políticas públicas, práticas jurídicas e afetivas que mantiveram os negros em posições de sujeição, mesmo sob novas formas de cidadania. Hartman propõe uma leitura crítica da noção de “liberdade”, mostrando como ela pode operar como outro modo de controle quando não se rompe com as estruturas que sustentaram a escravidão. 

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citacao Saidiya Hartman

Conexões com a decolonialidade

Eu não poderia deixar de relacionar o trabalho de Saidiya Hartman com o meu tema de pesquisa. Embora ela não se defina como uma autora “decolonial” nos termos latino-americanos, sua obra dialoga com esse campo em diversas frentes. O questionamento da centralidade do arquivo, a crítica ao universalismo ocidental e a valorização de epistemologias negras fazem de sua escrita uma aliada poderosa nas lutas por justiça cognitiva.

Há um elo evidente entre a fabulação crítica de Hartman e o esforço de autores decoloniais por desmontar os pilares da colonialidade do saber e do ser. Ao colocar no centro da narrativa as vidas marginalizadas, a autora propõe uma ruptura com o modelo de conhecimento que exclui e silencia.

Além disso, suas obras desafiam a linearidade histórica e a lógica do progresso, propondo outras formas de temporalidade: mais circulares, mais afetivas, mais conectadas às memórias que não cabem nas cronologias dominantes.

Por que ler Saidiya Hartman hoje?

Porque ainda estamos vivendo os ecos de uma história que tentou apagar vozes negras. Porque os silêncios dos arquivos continuam influenciando o que chamamos de “verdade”. Porque precisamos de ferramentas para imaginar futuros que não estejam presos à repetição da violência.

saidiya hartman
Foto: Steven Gregory

Ler Saidiya Hartman é se dispor a escutar as vozes que ecoam nas brechas do passado e, com elas, reinventar o presente.

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