Resenha: Memória de Menina (Annie Ernaux)

Memória de menina, de Annie Ernaux, me fez companhia nos últimos meses. Foi uma leitura que me acompanhou em uma viagem pelo litoral do Nordeste e se estendeu ao longo de dezembro, quase como se o próprio tempo da leitura dialogasse com o movimento de retorno e insistência que estrutura o livro. Publicado no Brasil pela editora Fósforo, o livro integra o vasto conjunto de textos "memorialísticos" da autora, e recebi em parceria com a editora.

capa memoria de menina

SINOPSE

Aos dezessete anos, a jovem Annie deixa sua cidade natal para trabalhar como monitora numa colônia de férias na Normandia. É ali que vive sua primeira experiência sexual, em uma noite que deixaria nela uma marca indelével. Em Memória de menina, mais de cinquenta anos depois, Ernaux mergulha no verão de 1958 para tentar acessar aquilo que gostaria de esquecer, mas que sabe estar na origem de quem ela se tornou, e também de seu trabalho como escritora. Com minúcia, ela tenta reconstruir a si mesma e o contexto da época para chegar ao coração da experiência tal como a viveu, e que a assombrará por tanto tempo. É assim que Ernaux se dedica a alguns dos temas mais dolorosos de sua obra, decorrências da memória primordial que dá nome ao livro. Depois daquela noite, ela testemunhará no próprio corpo os efeitos do trauma: a interrupção súbita da menstruação e um transtorno alimentar — numa época em que não havia com o que nomeá-lo. A isso se somam outras dificuldades comuns às jovens de seu tempo: uma dolorosa tomada de consciência e internalização do seu lugar na sociedade, expressa no abandono das ambições acadêmicas e em angústias quanto ao futuro profissional. Ao mesmo tempo, a jovem Ernaux descobre O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, e a dimensão política de seus problemas pessoais. Lemos o seu despertar para o feminismo, que a ajuda a encarar, mesmo que com limitações, sua condição: "ter recebido as chaves para entender a vergonha não confere o poder de apagá-la". Atenta à forma como os fatos históricos e as experiências vividas depois do verão de 1958 moldam sua visão sobre a época, Ernaux empreende uma das incursões mais profundas de sua constante reflexão sobre a temporalidade, fazendo de Memória de menina um ponto luminoso de sua obra. 
 
 
livro memoria de menina 

A obra se concentra majoritariamente entre os anos de 1958 a 1962, período em que Ernaux revisita sua passagem da adolescência para a vida adulta. É nesse intervalo que surgem as experiências ligadas à descoberta da sexualidade, à vivência em um internato onde cuidava de outras crianças e, sobretudo, às primeiras possibilidades de socialização fora de seu meio rural de origem. Trata-se de um momento de deslocamento, no qual a autora começa a se perceber em trânsito entre mundos, códigos sociais e formas de existir.

No entanto, apesar de o livro ser curto, a leitura me exigiu esforço. A narrativa insiste de forma quase obsessiva na ideia de que a “menina de 1958” não é a mesma mulher que escreve no presente. Ernaux retorna reiteradamente a esse ponto, explicando, reformulando e reafirmando a distância entre essas duas figuras. O efeito, ao menos para mim, foi de cansaço. A repetição constante dessa chave interpretativa acabou enfraquecendo o impacto das experiências narradas, que por si só já carregam densidade suficiente para sustentar o texto.

Aquela menina de 58, que passados cinquenta anos é capaz de surgir e provocar um colapso interior, vive, portando, em mim com sua presença escondida, irredutível. Se o real é aquilo que age, produz efeitos, segundo a definição do dicionário, essa menina não sou eu, mas ela é o real em mim. Uma espécie de presença real. (p. 17, grifo da autora)

Isso não apaga, evidentemente, as qualidades que fazem de Annie Ernaux uma autora singular. Sua escrita permanece direta, honesta e despojada de ornamentos desnecessários. Há uma franqueza que incomoda e, ao mesmo tempo, sustenta o interesse até o fim. Foi essa voz firme e sem concessões que me fez continuar a leitura, mesmo quando a estrutura narrativa parecia girar em torno do mesmo eixo.

Ainda assim, este foi, até agora, o livro de Ernaux de que menos gostei. Sendo o terceiro que leio, sigo considerando O jovem como o mais potente e bem resolvido entre eles. Memória de menina não me parece uma boa porta de entrada para quem ainda não conhece a autora, justamente por exigir certa familiaridade com seus procedimentos autobiográficos e com sua insistência analítica sobre o próprio passado. Por outro lado, para leitoras e leitores que já acompanham sua obra, o livro cumpre um papel importante ao aprofundar a compreensão de sua trajetória e das obsessões que atravessam seu projeto literário.

No conjunto de seus memoirs, Memória de menina talvez não seja o mais envolvente, mas ainda assim amplia o mosaico de uma escrita que se constrói a partir da exposição radical de si. E isso, gostemos mais ou menos do resultado, continua sendo uma das marcas mais contundentes da literatura de Annie Ernaux.

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 ISBN: 978-65-6000-096-4

Editora: Fósforo

Nota: 3/5⭐ 

1 Comentários

  1. Nossa, eu realmente fico surpreso como as pessoas conseguem ter uma memória tão boa ao ponto de escrever este tipo de livro, quando eu só consigo ter flashes do dia de ontem. hehe

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